A Garota No Trem [Think About It]

domingo, 12 de março de 2017
Aconteceu uma coisa recentemente que eu achei interessante compartilhar com vocês.


Sábado, uma estação de trem qualquer no Rio de Janeiro.
Sentei-me ao lado de uma mulher de uns vinte e cinco anos, acho. Ela até me perguntou se era naquela plataforma mesmo que se pega o trem para a Central, enquanto eu lia Heidi - A Menina dos Alpes. Depois, ela começou a mexer em seu celular, aparentemente calma. De repente, uma chamada apareceu em sua a tela(o toque era até Bang, haha). Ela atendeu e disse "Pra gente voltar, você vai ter que mudar. Nem adianta ficar me ligando sem querer mudar de verdade, fulano". 

Na última frase, o tom de sua voz já estava elevado. A estação não estava muito cheia, mas os poucos presentes perceberam a agitação vindo do meu banco. Eu voltei para a leitura, mesmo tenso. Mas era praticamente impossível não prestar atenção em sua conversa ao telefone. Ela não era nem um pouco discreta. 

"Você é um machista autoritário, fulano!"; "Eu usei sim. Usei e uso de novo. Estou usando agora mesmo. E é por isso que eu quis terminar. É melhor assim." 

É, claro, eu não me lembro as palavras exatas usadas pela tal mulher da estação, mas não foi nada muito distante disso. Em seguida, ela só respondia algumas coisas com "sim", "não" ou "já chega, fulano!". Segundos depois, a chamada terminou, ela já estava impaciente, mas tentava disfarçar um pouco. As pessoas pararam de olhar para ela, o silêncio retornou e eu finalmente consegui voltar para a leitura de Heidi.

No momento em que eu lia por volta da página 100, acho, o livro falava sobre um fantasma que estava assombrando a casa onde a protagonista estava vivendo. Todos os personagens estavam apavorados com a presença no vulto branco que passava pela porta, sempre na madrugada. É até interessante a forma como o livro trata isso, já que é infanto juvenil. No fim, descobrimos que o fantasma era apenas uma pessoa normal e que todos conheciam! Não posso dizer quem é, pois seria spoiler. Aliás, terá uma resenha de Heidi aqui no blog em breve.

Pois bem. Tudo estava calmo até o fulano aparecer na estação de trem, talvez dez minutos depois. Eu fiquei perplexo. Sim, o cara que falava ao telefone com a mulher. O "machista autoritário", segundo ela. 

Ele chegou gritando. "Por que você desligou na minha cara?"; "Tá achando que eu sou o quê?". A mulher estava tão perplexa quanto eu. "Eu sabia que você estava com essa saia. Estava te observando da rua. Só queria saber se você iria mentir pra mim!".

"Eu não preciso mentir mais. Por isso eu terminei, fulano" - a mulher disse.

Olhei para os lados, procurando pela reação das pessoas. A maioria fingiu que nada estava acontecendo. Mesmo quando o homem a pegou pelos ombros e a balançou com força, gritando bem próximo ao seu rosto. Eu pude sentir um cuspe seu esbarrar meu braço. Olhei novamente para as pessoas e um homem, não tão distante, agora pusera fones de ouvido. Balancei a cabeça, preocupado. 

Foi aí que o trem finalmente resolver chegar. Eu me levantei, me distanciando aos poucos, ficando à beira da plataforma. Ao perceber isso, o homem imediatamente a soltou. Eu também ouvi a mulher gritar algo com ele em relação a isso. Quando o trem estacionou, os dois ainda discutiam, agora, ela também estava de pé, com o seu telefone em mãos. 

As portas se abriram, e ele continuava a gritar com ela. Foi quando eu decidi tomar uma atitude simples, mas que surtiu um efeito. Já que ninguém fez absolutamente nada...

"Ei, moça. Esse é o central. Vai perder seu trem..." 

Só isso. Nada além disso. Nem um grito. Nem um "sai pra lá, valentão". Só. Bem, acho que foi uma atitude inteligente, já que sou um combo de 50kg + um metro e meio de altura. Aquele homem devia ter quase um e oitenta, não sei. 

Os dois pararam. Imediatamente. O homem olhou para trás, para mim, de cara feia. A mulher mordeu os lábios e correu em direção ao trem. Passou ao meu lado e adentrou pelas portas automáticas. E eu, logo em seguida. Não olhei para trás novamente para checar o tal homem. E nem ela, já que entrou limpando as lágrimas e se sentou no primeiro banco vazio às vista.

As portas se fecharam e o trem partiu. Foi quando Heidi me veio à cabeça.
Muito se fala de monstros, coisas sobrenaturais, mundo espiritual. O medo do desconhecido. Dos mortos. De coisas que nunca, NUNCA, vimos. Talvez você já tenha visto, ou acredite nisso, mas não podemos fazer a experiência de algumas pessoas, uma coisa universal. Nem todos acreditam nessas coisas, afinal.

E percebi que, enquanto apreciava a narrativa do livro sobre o mistério do fantasma, em nenhum momento senti que seria algo sobrenatural. Não senti medo. Porque Heidi não é sobre fantasia, é sobre a realidade. E a realidade da vida é que os monstros são humanos, de carne e osso, e andam com máscaras de "bons moços" por aí. Verdadeiramente, eu fiquei assustado com aquele homem. Eu realmente tive medo. Porque, uma coisa é você ver uma notícia  na televisão, no Facebook, no Twitter. E quando acontecer ao seu lado? Na família? Com uma amiga sua? Como saber quem é bom ou mau, de verdade? 

No caso desse homem, ele não fazia questão de esconder o seu machismo. Mas, será que todos são assim? Será que o namorado da sua irmã, da sua amiga, não reprime isso só na frente dos outros? E que, quando está sozinho com sua parceira, é um monstro, na verdade? Não sei se vocês entenderam a conversa deles, mas, pelo pouco que ouvi, percebi que ele queria mandar no que a mulher poderia fazer, vestir, etc. "Eu usei sim. Usei e uso de novo. Estou usando agora mesmo."

Muitas têm medo de encarar, de arriscar pular fora de um relacionamento abusivo por medo do cara querer se vingar depois. Quantos casos você já viu na televisão de homens que mataram suas ex-namoradas/esposas por não terem aceitado o término? Gente, pelo amor de Deus, isso NÃO é normal. Isso não é um tipo de coisa que você vê na TV e diz "ah, okay". Na verdade, acho que hoje (e já faz um tempo) vivemos num grande momento de banalização do sofrimento alheio. É só prestar atenção nos telejornais por alguns minutos. É completamente normal você ouvir um jornalista dizer que "num acidente com cem pessoas, só três morreram". Como assim,? Nós entendemos que poderia ter morrido mais pessoas, mas, uma morte nunca é apenas SÓ uma morte. Alguém morreu. E esse alguém às vezes deixou filhos, amigos, família. Alguém certamente está sofrendo com isso. Então, não foi uma morte. Entende?

(Ou, outra: O jornalista está falando sobre uma tragédia envolvendo estupro, ou qualquer outro tipo de crime, e daí ele vira e fala "Você conhece a Sky? Pacotes a partir de 39,90...")

Enfim, já falei demais. Pra fechar: eu só queria desabafar sobre esse descaso das pessoas em relação ao que acontece no mundo. Não distante, não na China. Na rua delas, no trabalho delas, na escola, na faculdade. Há muitas coisas que podemos fazer, que podemos combater. Mesmo que de forma mínima, você pode fazer alguma coisa. Denunciar é uma delas, por exemplo. As mulheres, infelizmente, ainda sofrem com essa coisa tão atrasada que é o machismo. E você pode fazer alguma coisa. Se você quiser, você pode. Nós podemos! E é por isso que hoje existem tantas mulheres lutando, levantando a bandeira do feminismo, da igualdade. Porque é realmente necessário. Mas ainda há quem diga que tudo isso é "mimimi", não é mesmo?

Pois, quem diria que, um simples "Ei, moça... Vai perder seu trem...", poderia mudar uma situação tão horrível como aquela...


2 comentários

  1. Estou sem palavras para seu texto de hoje. A profundidade dele e os questionamentos que você faz. Parabéns Jhonã Magnane. <3

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